O constitucionalismo consiste em um importante movimento cujo aspecto central está relacionado a ideia de limitação do poder. No entanto, a sua definição não constitui matéria simples ou unívoca, uma vez que sobejam vozes doutrinárias que buscam lhe definir diferentes contornos (Rossi, 2014). Não obstante, o fato é que a ideia de limitação do governo pela lei constitui o seu elemento primordial. José Joaquim Gomes Canotilho, ao discorrer sobre o tema, afirma que o constitucionalismo exprime uma ideologia em que vigora, nas palavras do cientista política americano Charles Howard Mcllwain, “o governo das leis e não dos homens” (1993).
Os contornos históricos do constitucionalismo ocidental remetem a importantes momentos em que se buscou a limitação de poderes e o fim de abusos ocorridos com a concentração de decisões na figura de um soberano. Em 15 de junho de 1215, na Inglaterra, tem-se um relevante marco temporal com a assinatura da Magna Carta Libertatum pelo rei John Lackland (“João Sem-Terra”) quando barões se rebelaram com os abusos cometidos pelo monarca e buscaram limitar os seus poderes. Na ocasião, limitaram-se os poderes do soberano, asseguraram-se determinados direitos aos cidadãos, ocorre uma separação entre o Estado e a Igreja, reconhece-se a propriedade privada e há uma tentativa de regulamentar outros direitos básicos. A “Grande Carta” foi um marco e uma inspiração à promulgação em 1689 do Bill of Rights pelo parlamento inglês. Movidos por ideais justos e visando constituir uma sociedade com bases iniciais igualitárias, tais movimentos foram pedras angulares no constitucionalismo ocidental.
Em outro ângulo histórico, impulsionados por esse movimento de limitação de poderes e supremacia da lei, quando colonos ingleses emigraram para o então denominado “Novo Mundo” no atual território dos Estados Unidos da América, decidiram, então, a bordo do navio Mayflower pactuar um acordo visando estabelecer direitos com objetivo de estabelecer uma sociedade regida pelas leis (Gonçalves, 2012). Tal ideário se assenta e repercute com a posterior declaração de independência dos Estados Unidos da América. Na ocasião, Thomas Jefferson declarou que “todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade” (United States, 2012).
Exemplos de igual relevância podem ser encontradas em outros importantes momentos históricos como a Revolução Francesa até movimentos mais recentes com a Constituição Mexicana de 1917 e também no território brasileiro. A Constituição Federal de 1988, alcunhada por Ulysses Guimarães como “Constituição cidadã”, veio a romper com um ciclo de restrições e opressões e inaugurar uma nova era de liberdades cívicas no Brasil.
Como se pode perceber, os movimentos constitucionais possuem além do seu caráter limitador e regulador um viés de grandes aspirações, marcadas por momentos históricos em que ocorre uma ruptura de poder entre a tirania e os governados. No entanto, apesar dos nobres ideais que permeiam a elaboração de uma constituição, no Brasil depara-se facilmente com movimentos que em nada se assemelham as aspirações de construção de um país justo e igualitário para todos. Ao se analisar recentes propostas de emenda à constituição brasileira, pode-se encontrar inúmeros exemplos que vão abertamente no sentido contrário da ideologia e aspirações constitucionalistas. Entre tantos exemplos, pode-se mencionar casos de duvidoso conteúdo como a “PEC da Mordaça”, “PEC Anti-STF”, “PEC da Vingança”, “PEC do Calote”, “PEC Fura-Teto”, “PEC Kamikaze”, “PEC do Penduricalho” entre tantos outros nomes com predicados negativos. Ao se analisar os movimentos de reforma da Constituição brasileira, não é difícil perceber o quão distantes estão do ideário histórico que permeou o constitucionalismo ocidental. Ainda que as alcunhas não façam parte de seus conteúdos originais, tratam-se de fidedignas representações dos objetivos que visam alcançar.
Assentado esse quadro, observa-se que a Constituição Federal de 1988, longe da ideologia constitucionalista e de seus predecessores históricos, está virando um depósito de manobras políticas que não condizem com princípios democráticos e republicanos, mas que visam apenas acomodar interesses escusos travestidos de uma aparentemente legitimidade jurídica. Qualquer problema fruto de situações errôneas ou mal organizadas pode ser resolvido, por exemplo, por uma mudança ad hoc nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias ou alguma outra fórmula que vise conferir legitimidade a propostas desarrazoadas.
Não poucas vezes testemunham-se autoridades se emocionando lendo a Carta Magna brasileira. Contudo, a realidade é muito distante e o texto constitucional se confina muitas vezes a ser objeto de joguetes políticos que não trazem qualquer evolução à sociedade brasileira.
Em contraste a esse cenário desesperançoso, encontra-se na capital da Lituânia, Vilnius, uma pequena comunidade de artistas e intelectuais localizada no bairro de Uzupis, a qual proclamou de a sua independência no dia 1º de abril de 1997. De forma poética, mas sem perder a beleza do que são as grandes aspirações da vida, promulgou a sua Constituição assentando valores simples, mas que falam ao íntimo do ser humano. Alheia às complexidades políticas criadas por setores que divergem em uma busca obscura por poder, a Constituição de Uzupis assim dispõe:
- Todo mundo tem o direito de viver à beira do Rio Vilnia e o Rio Vilnia tem o direito de correr por todos.
- Todo mundo tem direito à água quente, aquecimento no inverno e a um teto.
- Todo mundo tem direito de morrer, mas isso não é uma obrigação.
- Todo mundo tem o direito de cometer erros.
- Todo mundo tem o direito de ser único.
- Todo mundo tem direito de amar.
- Todo mundo tem direito de não ser amado, mas não é obrigatório.
- Todo mundo tem o direito de ser banal e desconhecido.
- Todo mundo tem direito ao ócio.
- Todo mundo tem direito de amar e cuidar de um gato.
- Todo mundo tem direito de cuidar do cão até que um deles morra.
- Um cão tem o direito de ser um cão.
- Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudá-lo em tempos difíceis.
- Todo mundo tem o direito de não estar ciente de seus deveres de vez em quando.
- Todo mundo tem direito de estar em dúvida, mas isso não é uma obrigação.
- Todo mundo tem direito de ser feliz.
- Todo mundo tem direito de ser infeliz.
- Todo mundo tem direito de ficar em silêncio.
- Todo mundo tem direito de ter fé.
- Ninguém tem direito à violência.
- Todo mundo tem o direito de observar a própria insignificância.
- Ninguém tem o direito de ter um projeto em eternidade.
- Todo mundo tem direito de entender.
- Todo mundo tem o direito de não entender nada.
- Todo mundo tem o direito de ter qualquer nacionalidade.
- Todo mundo tem direito de celebrar ou não celebrar seu aniversário.
- Todo mundo deve se lembrar do próprio nome.
- Todo mundo pode compartilhar o que tem.
- Ninguém pode compartilhar o que não tem.
- Todas as pessoas têm direito de ter irmãos, irmãs e pais.
- Todo mundo pode ser independente.
- Cada um é responsável pela sua própria liberdade.
- Todo mundo tem o direito de chorar.
- Todo mundo tem direito de ser mal interpretado.
- Ninguém tem o direito de culpar ao outro.
- Todo mundo tem o direito de ser único.
- Todo mundo tem direito de ter direitos.
- Todo mundo tem o direito de não ter medo.
- Não se deixe vencer.
- Não se vingue.
- Não se renda.
Ainda que se possa argumentar a respeito da simplicidade ou eventual utopia dos presentes dispositivos constitucionais, a questão que emerge é em qual momento discursos políticos lograram êxito em complicar excessivamente e se distanciar das necessidades básicas da população em vista de continuamente acomodar interesses espúrios? Paolo Barile, editor da clássica obra de Piero Calamandrei Eles, os juízes vistos por nós, os advogados (1995), apresentou uma vinheta na capa do livro composta por uma balança com dois pratos em que uma balança havia um código de leis e na outra uma rosa. No entanto, contrariando a lógica, a balança pendeu mais para o lado da rosa. Tal fato se deu, nas palavras de Barile, devido ao fato de que “a poesia vence o direito”.
No contexto brasileiro, direitos básicos dos cidadãos muitas vezes se limitam a estampar o texto constitucional sem qualquer efeito prático ou são suplantados por fórmulas que criteriosamente os sufocam. Conforme mencionado acima, não faltam alcunhas pejorativas para representar as tentativas de implementar propósitos espúrios no texto constitucional. Torna-se imprescindível, pois, retomar os auspícios do constitucionalismo e buscar a simplicidade pela qual grupos se levantaram para assegurar questões vitais para a sociedade em busca da felicidade. Nesse sentido, a Constituição de Uzupis em seu artigo 41 assenta um preceito fundamental na luta for uma sociedade melhor: não se renda. Tal qual no passado, o movimento pela limitação aos abusos permanece e a luta pelo alcance dos direitos mais simples expressados de forma poética pela Constituição de Uzupis continua.